
– Doutor, me fala, ele vai morrer?
– O dano foi importante, mas qualquer prognóstico é prematuro.
– Mas ele pode ficar bom?
– Precisamos aguardar a evolução do quadro. A cirurgia acabou há pouco tempo.
– Por que ele ainda está na sala da operação?
– Temos que estabilizá-lo.
– Doutor, me fala tudo. Eu quero saber das coisas.
– A psicóloga do hospital vai procurar a senhora.
Eu sou adulta, jornalista e com ticos e tecos em bom estado, portanto, sem grandes problemas de compreensão de linguagem; mas quando meu marido, o amor da minha vida, sofreu um acidente que o deixou na UTI por três dias e depois o matou, meu cérebro parecia estar encharcado de uma espécie de mingau alcoólico. As cenas, os diálogos, tudo era meio pastoso, e por mim registrados como se eu estivesse bêbada.
É claro que minha cabeça estava operando de um jeito diferente; talvez para me proteger, e, por isso, eu achava que não estava entendendo o que o médico dizia. Mas hoje também me é claro que o doutor não ajudou muito. Nós tínhamos mais ou menos a mesma idade, entre 35 e 40 anos, eu estava literalmente implorando por informação e ele, certamente, convive com casos semelhantes dez vezes por dia. Podia e devia saber falar daquele acontecimento com mais verdade. Mesmo que ela fosse: “Eu não sei”. Informação acalma a gente. Eu, muito provavelmente, teria me sentido menos bêbada se ouvisse: “A pressão dele está bem alta e isso é grave, perigoso. Estamos tentando normalizá-la”; ou “Vou te contar tudo o que acontecer. Talvez eu não consiga vir toda hora aqui no corredor, mas não vou te esconder as coisas”. Vou pular a parte do “foi a óbito”.
A morte é composta por um conjunto de palavras e frases quase proibidas. Elas saem envergonhadas. Não só da boca dos médicos, mas dos nossos amigos queridos. São ditas como se estivessem cruzando as pernas. O ouvido de quem está enlutado também passa por uma transformação maluca. Parece que dele surge uma veia que vai direto ao coração – que está despedaçado – e tudo o que te falam machuca. Um preocupado “Como você está hoje?”, perguntado pela sua mãe, pode gerar pensamentos (no meu caso, infelizmente, respostas) do tipo: “Como assim como eu estou? Destruída, claro.”. Também me desgovernava quando alguém dizia: “Eu faço qualquer coisa para te ajudar. Qualquer coisa. O que você quer?”. Eu queria morrer também. Dava?
É muito egoísmo querer que os outros pensem antes de verbalizar algo a um enlutado? Provavelmente é. Até porque, muitas das pessoas que estão em volta do enlutado-mor também estão arrasadas com aquela morte e, pela dor e pela falta de hábito em falar dela não sabem o que dizer. Mas talvez seja um bom exercício pensar sobre isso; digo, que tipo de fala ajuda numa hora dessas. Eu preferia quando minha mãe e meus amigos falavam… Mentira. Eu preferia quando eles ficavam quietos do meu lado. Mas no que diz respeito a “fazer qualquer coisa”, era melhor quando eles resolviam algum problema e depois me avisavam: “Eu já conversei com o padre e ele não vai encompridar essa maldita missa”.
Há alguns anos, na Veja, onde eu trabalho, um jornalista do New York Times foi contratado para nos dar um curso sobre como fazer matérias em vídeo para o site da revista. Ele deu exemplos de materiais que faziam sucesso no NYT online e, um dos maiores deles, era um programinha em que pessoas conhecidas falavam sobre a morte delas. Um jornalista perguntava ao famoso como ele achava que ia morrer, o que ele esperava que ia acontecer depois de sua morte, se tinha medo dela etc. A reportagem era aprontada, vista por meia dúzia de profissionais do jornal e só ia ao ar quando o entrevistado morresse; o que podia levar aaaanos. E, detalhe: num espaço curtíssimo de tempo depois do anúncio do falecimento, coisa de minutos. O repórter do New York Times disse que quando um desses vídeos ia ao ar o site do jornal explodia; tanto tanto, que chegava a dar tilte.
O que aqueles leitores tanto queriam ver? O morto falando sobre a morte.
Precisamos falar sobre a morte.
Texto por:
Juliana Linhares, jornalista.
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